Capa do livro

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sexta-feira, 30 de março de 2012

Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu.



Era para ser uma tarefa prosaica, daquelas que não pesam, não consomem muito tempo, sem hora marcada, um item a mais em minha agenda. Afinal, a recomendação da médica fora explícita – “Recomendo que você faça uso do Actonel de 150 mg, essa medicação irá interromper o processo de osteopenia” – Aceitei brandamente, até porque a ingestão de um comprimido mensal, com o cuidado de tomá-lo em jejum e permanecer em pé durante meia hora, em nada afetaria minha vida, ou melhor, contribuiria para no futuro a preocupação com osteoporose fosse quase nula. E os meus ossos agradeceriam.
                Por volta de duas horas da tarde, com o sol de verão comendo solto, fechei a porta da casa e “pernas para que te quero” fui pesquisar a quantas andava o preço do medicamento milagroso nas farmácias de Ipanema, e aqui tem mais de uma por quadra. Julguei que seria tarefa fácil. Qual nada, cada estabelecimento pratica o preço que quer, e sempre abusivo, como é prática nesse Brasil desgovernado, principalmente em se tratando de produtos para pessoas com mais de cinquenta anos.
                Uma, duas, três, quatro visitas e o suor escorrendo rosto abaixo, a indignação aumentando, já pensava na médica gentil com certa raiva. Poxa vida, será que aquela criatura não lembrou que sou aposentada pelo Aerus? Sacanagem, essa merda de remédio pela hora da morte. Bastou eu lembrar que futuramente poderia sofrer uma queda - e lá se foi o fêmur -, para contemporizar meus pensamentos.
Já andava pela altura da Vinicius de Moraes quando vi uma drogaria à lá Duane Reade de New York, bonitona, limpa e cheirosa. Levantei os olhos para ver o nome no letreiro: Venâncio, ops, a outra que conhecia ficava na Bartolomeu Mitre, uma farmácia com preços mais acessíveis. Quando pus o pé adentrando o ambiente, eis que uma sensação estranha tomou conta de meu corpitcho... conhecia aquele lugar. Parei horrorizada. Era o endereço da Livraria Letras e Expressões, e no segundo andar havia o Café Ubaldo, aonde podíamos ir até altas horas da madrugada para tomar um café, ler livros e conversar com os amigos. A livraria era perfeita, livros descolados e “normais”, revistas do mundo todo, jornais, canetas e presentinhos bacanas, local de notívagos antenados e cultos. Boquiaberta, assim eu permaneci por alguns minutos. Que profanação! Imaginei os livros sendo embalados, alguns pulando caixa a fora, fugindo da prisão em forma de papelão, as letras revoltadas escorregando das páginas e se agarrando nas paredes do lugar, as vozes alteradas dos autores se misturando à poeira da mudança, os versos mudando de lugar, os poemas modificando suas rimas, uma manifestação coletiva de indignação, sabiam do futuro daquele templo da criatividade, da cultura.
Entre não contaminar minhas lembranças e a questão óssea... a dúvida: prossigo?
Em passos compassados e pesados pela dor da perda me dirigi ao balcão. Meio envergonhada perguntei o preço do maldito Actonel. Pimba! Preço justo e ainda com desconto. Sucumbi, meti a caixinha na bolsa e saí apressada.
Meus ossos estão supimpas, minhas lembranças não morreram, mas atualmente, quando ingiro o tal comprimido no dia 4, sinto letras se aglutinando em minha garganta.
Cláudia Vasconcelos


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